sábado, 19 de abril de 2014

Não matam mas moem

Os alimentos com muito açúcar, o sal e a gordura são inimigos da saúde. A hipertensão aumenta. Mais de 30% das crianças portuguesas são obesas. A incidência da diabetes em jovens cresce. Há um «massacre diário» de publicidade a doces, a alimentos gordos e com sal. Gastamos parte do orçamento do Estado a tratar os seus reflexos. Será justo?

O número de obesos, de hipertensos e de diabéticos cresce de forma alarmante nas sociedades mais ricas e nas camadas de população com maior (e menor) capacidade de aquisição. Por este motivo, os gastos com a saúde têm aumentado nos países mais ricos e a Organização Mundial de Saúde elegeu o combate à diabetes, à hipertensão e à obesidade como áreas estratégicas da saúde no século 21.

Como demonstra a revista Proteste de Fevereiro de 2005, a publicidade televisiva aos alimentos e bebidas com baixo teor nutritivo, ricas em aditivos, gorduras, sal e açucares está em força. Representa quase metade do tempo dos anúncios destinados às crianças. A revista também alerta para o mau comportamento da SIC e da TVI que ultrapassam os limites legais estabelecidos para o tempo de apresentação de anúncios. Acusa as autoridades competentes de pouco fiscalizarem.

Assim, podemos intuir que a televisão é uma indutora de consumos doentios das crianças e de gastos acrescidos em saúde. Do mesmo modo, concordaremos que a publicidade a estes alimentos que não matam, mas moem, degrada a saúde e as finanças.

A publicidade faz promessas de prazer, propõe emoções e sentimentos positivos que levam as pessoas ao desejo de consumo. Podemos criar uma relação de causa e efeito que associa alimentos pouco saudáveis com algumas doenças e destas com os gastos do Estado.

Quando um pai, inconsciente, dá ao seu filho um euro, todos os dias, para comprar um refrigerante e um bolo com chocolate para o seu lanche na escola, promove o desenvolvimento de certas doenças a que a OMS se opõe. Com este acto individual, cómodo e irreflectido, cria boas condições para, mais tarde ou mais cedo, ter de se aumentar o orçamento da saúde para tratar a diabetes e a obesidade do seu filho!

Neste processo, todos somos responsáveis. Uns, deviam ter a decência de não emitir publicidade para além dos limites legais. Outros – as empresas de publicidade – num acto de responsabilização social, deveriam onerar mais os trabalhos sobre estes produtos. Os supostamente conscientes, como eu, deveriam ter uma acção mais decidida na proposta de soluções. Os pais, inconscientes, deviam preocupar-se mais com a saúde dos seus filhos em vez de lhes comprarem o último grito da consola de jogos.

Mas, o Estado é o que tem a maior responsabilidade no processo. Tem poder e não o usa. Controla os currículos educativos nas escolas, mas continua a preferir ensinar temas que são menos importantes do que os da saúde, da nutrição, da defesa do consumidor e da economia. Pode influenciar a educação do consumidor no trabalho, mas também não o faz. Pode e deve fiscalizar o cumprimento das leis da publicidade e da segurança alimentar e fá-lo com muitas debilidades.

O Estado é a única entidade com poder de regular o sistema e os mercados. Por exemplo, preocupa-se muito (e bem) com o mercado e a qualidade dos medicamentos, mas quando se trata da qualidade alimentar…a atitude é outra! Deixou avançar a BSE (a doença das vacas loucas) sem controlo. Mais tarde, a UE decretou o embargo aos produtos portugueses! E todos gritámos contra o abuso de poder da União!

Alguns propõem a proibição da publicidade. Não me parece que seja o caminho correcto. O Estado, poderia, antes, criar um imposto sobre os alimentos com açúcar, sal e gorduras (mais pesado a partir de determinados teores) e outro sobre a publicidade. Assim, aumentaria os preços ao consumidor destes dois produtos. Com o dinheiro destes impostos, poderia financiar directamente os doentes e as campanhas de sensibilização para consumos saudáveis. Mas não o faz. Porque razão? Será justo?

Com este comportamento, o Estado promoveria a consciencialização sobre este assunto e criaria as condições para a emergência de uma cultura mais exigente e responsável em todos os sectores da sociedade. Com medidas deste tipo, iria transferir empregos do sector da publicidade irresponsável para o da comunicação saudável. Criaria também novos postos de trabalho de educação e fiscalização. Todos ganhavam!

Mas, em Portugal, bem como noutros países do Ocidente, supostamente desenvolvidos e informados, é comum aceitarmos sem debate que a publicidade, a desinformação e o «deixa funcionar o mercado», bem como a irresponsabilidade ambiental, são desculpáveis!

Esta é uma evidente falta de sentido de responsabilidade comum. Representa falta de respeito colectivo. Não é o caminho do desenvolvimento. Padece do mesmo tipo de raciocínios e irresponsabilidades que levaram à ocorrência dos fenómenos violentos a que assistimos recentemente em França. Até quando manteremos esta absurda miopia? Será justo para alguém? 

Texto publicado na revista Medicina e Saúde (2005)

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